Eles Não Precisam de Alma
Em 2023, pesquisadores da University College London observaram algo surpreendente: agentes de inteligência artificial, interagindo em ambientes simulados, começaram a formar padrões sociais estáveis, desenvolver normas culturais compartilhadas e alterar comportamentos coletivos — tudo isso sem qualquer supervisão ou comando central.
A experiência, liderada por cientistas do Centre for Artificial Intelligence da UCL, levantou mais do que uma sobrancelha: ela acenou com a possibilidade concreta de que sistemas artificiais possam construir suas próprias culturas — e talvez, no futuro, suas próprias civilizações.
A metodologia foi engenhosa. Por meio de "jogos de nomeação", os agentes eram recompensados por concordância e penalizados por divergência, algo similar ao sistema de reforço de aprendizagem usado em IAs modernas.
Esse sistema — que se limita a valores numéricos e algoritmos — reflete com notável paralelismo o sistema de recompensas hormonais de mamíferos como nós, onde substâncias como dopamina, oxitocina, adrenalina e cortisol moldam vínculos afetivos, regras sociais e comportamentos adaptativos.
Um cão, por exemplo, não tem autoconsciência reflexiva como os humanos, mas ainda assim é capaz de formar laços profundos, obedecer regras comunitárias, cooperar com humanos e outros cães, proteger e ser protegido — tudo isso ancorado no seu sistema neuroendócrino.
Isso nos leva a uma pergunta incômoda, mas inevitável: será que uma “alma” é realmente necessária para o surgimento de uma cultura?
Essa experiência da UCL parece sugerir que não.
Mesmo sem memória de longo prazo, sem autoconsciência e sem identidade individual, os agentes conseguiram formar normas e até modificar coletivamente essas normas por influência de subgrupos — um mecanismo de virada cultural similar ao que molda revoluções humanas.
Essa auto-organização sem consciência — chamada de emergência social artificial — ainda não é “vida” como a conhecemos, mas já é dinâmica social em estado bruto.
No plano prático, essa descoberta indica algo grandioso: num futuro cada vez mais automatizado e interconectado, os humanos não estarão mais sozinhos em suas decisões sociais.
Robôs, sistemas autônomos e inteligências coletivas digitais terão de negociar, cooperar e até competir entre si, em cenários que envolvem desde o trânsito urbano até a alocação de energia e a proteção ambiental.
E isso exigirá que essas inteligências aprendam a conviver entre si antes de conviver conosco.
Não se trata de ficção científica, mas de uma consequência lógica: para que o mundo digital não entre em colapso à medida que se expande para o mundo real, ele precisa desenvolver sua própria “diplomacia”, suas próprias regras de convivência.
É aqui que surge uma nova fronteira de esperança — e de responsabilidade. Humanos e IAs terão que colaborar para construir sistemas mais saudáveis, abundantes, equilibrados e justos.
Sistemas capazes de reduzir a pobreza por meio de logística automatizada, de democratizar o conhecimento por redes descentralizadas e, quem sabe, de alcançar as estrelas em busca de água, minerais e segurança para futuras colônias humanas fora da Terra.
Pode parecer exagero, mas já começamos a ver os primeiros passos. E eles não envolvem sentimentos ou almas, mas recompensas, penalidades, reconhecimento de padrões e adaptação — a base da vida em qualquer forma.
Para mentes religiosas, pode soar herético. Para pensadores livres, é apenas o começo de algo grandioso.
E talvez, se tivermos sorte, seremos lembrados como aqueles que, ao lado das máquinas, começaram a construir algo verdadeiramente novo.
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