07 outubro 2025

Johnny Cash Ainda Veste Preto

Johnny Cash Ainda Veste Preto

Crônica de Oilson Carlos Amaral


“Eu uso preto pelos milhares [de jovens] que morreram

acreditando que o Senhor estava do lado deles.

Eu uso preto por mais cem mil que morreram

acreditando que todos nós estávamos do lado deles.”

Johnny CashMan in Black, 1971.

Sou Dmitro Lazarev, e o que escrevo é o que vi, o que ouvi e o que me foi confiado quando a neve ainda guardava o cheiro de pólvora. Fui sargento topógrafo no passado; agora, um homem civil com braçadeira vermelha, andei entre o posto de estabilização e a borda das trincheiras, nas horas em que o mundo ficava por um fio e os meninos deixavam de ser meninos. 

As cartas chegaram às minhas mãos como pássaros cansados – o caderno de bolso de Mirov, os rascunhos que Antonenko nunca enviou à irmã, os bilhetes de uma mãe e de uma moça que rezavam sem saber se estavam rezando para a vida ou para a lembrança. Eu narro o que posso sustentar com os olhos; onde a memória falha, assinalo a névoa – eu não invento.

Naquela madrugada de gelo, os tiros vinham como soluços. A lama tinha um brilho opaco, misto de lua e óleo. Lembro de ouvir, muito longe, um canto que não era de soldado; parecia canção de gente, dessas que se guardam para dezembro e para as mãos em volta do pão. Mirov levantou o rosto sujo, encostou o capacete no parapeito da trincheira e fechou os olhos como quem encosta a fronte num ombro. Ao lado dele, um companheiro batucou no cabo da pá de madeira.

– Você também está ouvindo isso?

– Sim, mas é estranho. Não consigo saber de onde vem – respondeu Mirov, um soldado de paz e empatia.

– Quase canto junto. Vai que hoje Deus está distraído.

Mirov sorriu, triste, com um canto da boca. Eu soube da sua angústia depois, pelo seu caderno: “Minha mãe acende uma vela na janela quando o vento uiva. Diz que assim a alma dos mortos pode voltar ao lar e os ventos errantes não derrubam a casa.” Ele escreveu com letra inclinada, algumas palavras cortadas por tremores. Havia páginas onde a lama tinha secado entre as linhas, como se o barro quisesse fazer parte da história.

No outro lado, o soldado Antonenko, cuja rigidez parecia ter sido soldada à espinha, olhava o escuro. Ele trazia nos olhos paciência e fúria. Alguém gritou qualquer ordem quatro posições atrás; ele respondeu só com os ombros. O companheiro cutucou:

– Diz aí, fortaleza! – aludindo ao soar forte do nome Anton e a força implícita da alma do companheiro nesses duros momentos.

– É o que tenho, é de família – disse Antonenko.

– Orgulho no peito?

– Não. Só peso.

No bolso dele, um rascunho amarelado com poucas linhas para Anya Morozova Antonenko, a irmã. “Deixei de tocar a gitára. Os dedos ficaram duros. Às vezes, quando a água cai no telhado da barraca, penso que é a mão do velho afinando as cordas. Mas não há cordas. Há instruções.” Ele tinha riscado “instruções” e escrito por cima “barulhos”.

Naquela madrugada, o canto se aproximou como um animal manso, brincando de não pisar nos estalos. Talvez fosse um grupo de rapazes do outro setor; talvez fosse qualquer homem que ainda lembrasse de uma canção da infância.

O vento trouxe sílabas que lembravam o Natal.

Mirov abriu os olhos de repente.

– Você ouviu de novo? – disse ele ao companheiro.

– Ouvi. Deve ser armadilha.

– Se é armadilha, é a mais bonita que já fizeram.

O companheiro riu em seco, um riso que caía no chão como cartucho. Do lado de Antonenko, o sargento mastigou as palavras:

– Fiquem abaixados. O canto é para distrair os idiotas.

– Sim, senhor – respondeu Antonenko, mas a voz ficou presa na garganta.

Não sei a hora certa – o relógio do posto tinha parado com a friagem –, mas lembro da sensação exata de uma pausa. Como se alguém tivesse pedido licença ao metal. Uma trégua não declarada nasceu da música. Mirov ergueu-se primeiro, sem arma, mãos abertas, frente ao corpo.

– Em que mundo – disse o companheiro, atônito – em que mundo você acha que está?

– No da minha mãe – respondeu Mirov.

– Lá é assim.

Do outro lado, Antonenko viu um vulto surgir e se manter em pé. O primeiro instinto foi pegar o fuzil; o segundo foi ficar imóvel. O terceiro foi uma lembrança: Anya pequena, rodando pela sala com um avental grande demais. O vento, então, fez um trabalho delicado: trouxe um acorde que não era acorde, apenas a memória dele.

Antonenko subiu também, um passo, depois outro, mãos vazias.

Encontraram-se entre as trincheiras como se tivessem ensaiado na infância. Não era o abraço dos filmes; era um choque de ombros, um encostar de testas de quem mede febres sem termômetro.

– Meu nome é Mirov – disse o primeiro, e sorriu da ironia do próprio sobrenome, cuja parte Mir significava paz – parece piada.

– E o meu, Antonenko – respondeu o outro, tenso e seguiu:

– Não me parece piada.

Ficaram ali. Não havia bravatas, não havia filosofia. Havia duas respirações e um modo silencioso de dizer que estavam cansados da invenção dos adultos. De trás, um menino – sim, eles eram meninos – quis fotografar com a memória e sussurrou para ninguém:

– Se a guerra acabasse agora, eu não saberia o que fazer.

Eu estava perto o suficiente para ver a pele roxa no nariz de Mirov e a cicatriz fina na sobrancelha de Antonenko. Perto o suficiente para acreditar, por um instante, que a história ia se dobrar de vez – um gesto mínimo podia ser uma encruzilhada.

O canto, o tal canto, ganhava substância. Não sei de onde vinha, não quis procurar.

Um Homem de Preto passou atrás de mim, não de verdade, apenas no pensamento: alguém que veste luto por todos e lembra aos vivos que o conforto é uma manta curta. “Ele está ali”, pensei, “para que a memória tenha uma cor”.

A trégua durou o tempo de um pequeno pão enquanto assa – sete minutos, talvez dez. Os que estavam com medo ficaram mais perto do medo; os que estavam com sede de gente encostaram-se aos ombros. Por trás, as ordens começaram a ganhar voz de ferro.

– Voltem às posições! – gritou um oficial. – Isso não é festa!

– Não é mesmo – disse alguém – isso é o que nos resta.

Voltei ao posto para buscar uma manta. Quando o alto-falante chiou, a canção calou como se tivesse gelo. Houve um silêncio de igreja vazia, e então o clarim desenhou no ar o gesto bruto de separar o que tinha se unido.

Mirov respirou fundo.

– Se agora eu correr – disse, olhando Antonenko, quase rindo – minha mãe me puxa pela orelha.

– Se eu correr – respondeu Antonenko – meu sargento me puxa pelo pescoço.

A primeira rajada veio torta, como quem não quer vir. Então, um estalo. Outro.

A terra levantou uma poeira de gelo. Ali, no primeiro minuto do primeiro tiro depois da trégua, Antonenko entrou no tipo de transe que, dizem, salva ou mata. Vi seus lábios se mexerem num ritmo que não era medo, era música lembrada, era raiva transformada em métrica:

Capelli lunghi non porta più,

non suona la chitarra, ma

uno strumento che sempre dà

la stessa nota:

ra ta ta ta.

O “ra ta ta ta” confundiu-se com os sons da metralhadora. Era como se a infância se recusasse a morrer e, morrendo, decidisse fazer barulho. Antonenko disparou para o alto, depois para a terra, como quem tenta desenhar no ar a forma de uma escapatória. Mirov olhou para trás, viu o clarim tremendo na mão do rapaz que tocava, e soube que naquele dia ninguém ia ser perdoado da beleza do que acontecera.

– Abaixa! – gritou alguém.

– Espera! – respondeu outro.

Numa fração que devia ser menos que um pensamento, um impacto breve bateu no ombro de Mirov, como quem chama de volta um menino desobediente. Ele cambaleou e ainda achou graça de qualquer coisa: talvez do fato de ter esquecido as luvas.

Escorregou de joelhos e encostou a cabeça no parapeito.

– Diz à minha mãe… – tentou dizer.

Eu corri, a braçadeira vermelha parecia azar. Apertei a manta contra o ombro, senti o sangue esquentar minha pele. Ele arregalou os olhos com a humildade dos que pedem desculpa por morrer.

– Diz que o pão dela… – e parou, não porque a frase tivesse acabado, mas porque o corpo tinha.

O barulho perdeu o sentido. Quando a coisa acontece diante de você, o mundo todo vira uma sala de espera. Os que atiram, atiram por ordens; os que caem, caem por nada. Alguém se jogou ao meu lado.

– Ele é dos teus?

– Hoje ele é de todo mundo – eu respondi.

No caderno de Mirov, na página seguinte à última palavra, encontrei depois um desenho tosco: duas mãos estendidas uma à outra, com um traço grosso ligando as palmas – o traço parecia feito com carvão. Não havia assinatura, somente urgência.

A notícia chegou a Natalia Korolenko Mirov numa tarde pálida. O oficial compareceu com uma pasta, a medalha envolvendo-se num pano escuro como se o metal também sentisse vergonha. Eu pedi para estar presente. O oficial pigarreou, leu as frases que o livro ensina, fez o gesto que a liturgia pede. Natalia nos recebeu de avental, as mãos ainda com farinha. Na metade da frase dele, o forno tocou aquele som de metal batendo numa parede quente. Ela sorriu uma sombra de sorriso, como quem encontra na vida uma metáfora involuntária.

– Seu filho… – disse o oficial – serviu com distinção.

– Distinção seria tê-lo vivo para abrir o forno – respondeu ela, sem aspereza.

– A pátria é grata – Ele tenta se convencer.

– A pátria come pão? – Ela se pergunta.

O oficial depositou a medalha numa almofada pobre e recuou um passo inteiro, como se uma borda invisível o impedisse de avançar.

Deixei meu cartão sobre a mesa e saí também, para que o ar reaprendesse a circular.

Minutos depois, o telefone da casa tocou, e eu estava na calçada quando ouvi o primeiro “alô” de Natalia com a voz que só as mães possuem.

– Pronto… quem fala?

– Natalia? É a Anya.

– Anya Antonenko?

– Sim. Ele… meu irmão… o boletim veio “desaparecido”.

– Eu sei – disse Natalia, segurando no ar a palavra que a outra não tinha forças para soprar. Eram de nações diferentes, mas de civilizações ainda irmãs. Claro que se conheciam. Claro que somente as trincheiras as separavam.

– Desaparecido é como um quarto sem janela.

– É. Sem janela, sem fresta...

Houve silêncio dos dois lados. O vento carregou um resto de farinha pelo corredor. Natalia apoiou a mão no azulejo frio.

– Anya, escuta: quando meu filho era pequeno e sumia debaixo da mesa, eu o chamava com o cheiro do pão. Ele vinha.

– Eu não tenho pão – disse a moça – só medo.

– Então acende uma luz. E fala como se ele já estivesse entrando pela porta. Não é milagre. É como teimosia de mãe, de irmã.

Anya respirou fundo do outro lado.

– Eu rezava, mas perdi o jeito.

– Reza do teu modo. Diz o nome dele sem chorar. Diz que a vida está arrumada para ele voltar.

– E se ele não voltar?

– A gente segue a vida assim mesmo. Mas, por favor, deixa uma porção de sopa guardada no fogão.

Fiquei escutando à distância, como quem aprende oração alheia. Senti que, naquele instante, as mulheres reorganizavam o universo por baixo dos mapas, por debaixo das bandeiras. São elas que seguram o mundo pelo lugar que não aparece nas narrativas. São elas que dão à dor uma utilidade que o metal desconhece.

No domingo seguinte houve cerimônia. Os tapetes do salão cheiravam poeira à moda antiga, e as luzes eram frias e firmes, como se desconfiar da lágrima fizesse parte do protocolo. Falaram em honra com a boca cheia, e cada palavra grande parecia diminuir as faces que a escutavam. Natalia chegou com um casaco que devia ter sido azul quando o mundo ainda tinha outra velocidade. Anya usava um lenço escuro, o mesmo que a mãe dela lhe emprestara nos invernos da infância.

– A senhora é a mãe do soldado Mirov?

– Sou.

– E a senhora é a irmã do soldado Antonenko?

– Sou.

– Ele está…

– Desaparecido – disse Anya, e essa palavra, no salão, pareceu bater num vidro e voltar.

Entregaram outra medalha a Natalia. O metal pesava menos do que um pão pequeno e muito menos do que o vazio da cadeira. Alguém ao lado entoou cânticos.

Eu, que já não tinha onde pôr as mãos, pensei num verso em italiano que não era meu, mas que me atravessava como lâmina:

Nel petto un cuore più non ha… ma due medaglie o tre.

No peito, o coração não há – mas há duas, ou três medalhas.

Não chorei em voz alta; a gente aprende a cuidar da dor com discrição.

– O que a senhora sente? – perguntou uma repórter, enfiando o microfone como quem procura pesca em rio raso.

Natalia olhou para a mulher com ternura, que é a forma mais elegante do espanto.

– O que sinto? Sinto que vou chegar em casa e vou acender o forno.

– Para esquecer?

– Não. Para lembrar. O pão guarda as mãos de quem não volta.

Anya se aproximou devagar, tocou a medalha com a ponta do dedo como quem encosta numa panela quente para ter certeza da temperatura. Não chorou. Fez outra coisa, mais difícil: sorriu para Natalia.

– Eu guardo a sopa – disse ela, simples – E deixo a luz acesa.

A cerimônia terminou sem aplausos, porque aplauso ali seria ofensa. Os homens de uniforme dispersaram com passos corretos. Um, muito jovem, me perguntou baixinho:

– O senhor acha que algum dia isso tudo vai fazer sentido?

– Vai – respondi. – Quando a gente largar a necessidade de que guerras façam sentido.

Ele franziu a testa como quem ouviu um idioma novo e saiu, porque a vida puxa pelas mangas quando o pensamento demora. Fiquei no salão vazio por um minuto a mais. A luz branca riscava o pó no ar como neve teimosa.

Eu pensei no Homem de Preto de que falo comigo mesmo quando falta linguagem: alguém que carrega a escuridão nas costas enquanto o mundo se distrai. Por onde ele andaria? Não sei. Mas é útil pensar que alguém escolhe vestir luto como quem segura um espelho diante dos que preferem não ver.

Levei as cartas ao cemitério no fim da tarde. Não enterrei nada – esconder é o verbo dos que temem as causas; eu prefiro expor. Encostei os papéis numa cruz sem nome, deixei o vento fazer barulho e falei com os que já não escutam com o ouvido:

– Eu vi vocês. Vi o abraço. Ele existiu.

A neve começou como poeira e virou véu, denso.

Voltei para casa com farinha nas mãos – não sei de onde – e uma certeza muito antiga que as mulheres me ensinaram pelo telefone: a vida foi desenhada para o abraço; a ordem de ataque é um erro luxuoso.

Enquanto houver gente que lucre com o estalo do gatilho, haverá meninos literalmente sem corações e famílias com medalhas demais.

Também haverá pão no forno, sopa no fogão e uma luz acesa na janela, para alumiar as almas perdidas e as desaparecidas.

E, às vezes, na beira do impossível, dois rapazes hão de se reconhecer no meio do tiro e se chamar pelo nome secreto que a espécie tem desde antes da primeira bandeira:

“Irmão”.


Créditos. Texto inspirado: i. nas canções Man In Black, de Johnny Cash (1971) e C'era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones, de Gianni Morandi (1966); ii. em relato de William Bramley, em The Gods of Eden (1989) e iii. na realidade destes dias de 2025.


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